sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Agressões

Agredimos as pessoas
De quem mais gostamos todos os dias
Com palavras ditas e negadas
Com atitudes que doem
Pequenos olhares e gestos que ferem

Agredimos por estarmos presentes
E ainda assim, às vezes, estarmos ausentes

Por sermos quem somos
Por parecer que somos e não sermos
Por dizer o que pensamos
Ou o que pensamos pensar no momento
Ou o que nem sequer pensamos
E nos escapa da boca pra fora

Agredimos quando nos perdemos
Das pessoas
E às vezes quando as encontramos
Sem que elas queiram ser encontradas
Ou quando elas finalmente nos encontram

E assim as agredimos
Quebrando todas as expectativas
A nosso respeito
Que elas haviam montado
Tão delicadamente
Tão fragilmente
Como a uma taça de cristal.

Lentos pássaros

Lentos pássaros frios
Que cortam o céu da tardinha
Pintam-no de uma alegria triste.

Passam por nós soberanos
Cheios de plumas e cores
E olhares humanos.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Sorriso

Acerta-me a face em cheio
O doce resplendor (raro)
De um sorriso genuíno
Que deve ter se perdido
Por entre as tristezas do dia.

O assalto

Éramos todos felizes:
Eu, os bandidos,
As armas e o dinheiro

Até que alguém
Teva a brilhante ideia
De apertar um gatilho.

Graça

É engraçado perceber
Que aquelas emoções ali dispersas
São minhas também,
Mas me parecem tão distantes
Como aves abstratas no céu
Ou como antiquíssimos sonhos

É realmente engraçado perceber
O quanto a vida é na verdade
Um grande baile
Uma festa
E eu nem gosto de dançar...

Morangos

Alguém dirá, ou já disse um dia:
- Ainda é tempo de morangos.

Se for mesmo o caso
Avançaremos sobre eles avidamente
E os devoraremos com afã

Na esperança de que seu sutil sabor
Possa aplacar ao menos por um tempo
Os outros sintomas da vida.

Novas filosofias de um felino

Hoje meu gato ronronou
Melancolicamente
Achei que talvez fosse pelas muitas
Tragédias humanas, ou felinas
Que ocorrem hodiernamente no mundo.

Mas nada!
No fim era apenas fome mesmo.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Antigo mesmo tema

Quando sinto que te amo me desperto
E me vejo adormecido sem sua presença

Sinto que as belezas das orquídeas
Passam a ferir-me muito

E também os afazeres do cotidiano
Tornam-se insuportáveis para mim

Quando sinto que te amo me constranjo
Olho para o lado

E vislumbro nítido um vazio triste
Onde deveria estar sempre você.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Mentira

Fora sempre sincero
Sim, orgulhava-se disso

Nunca
Durante toda a vida
Contara sequer uma mentira

Nenhumazinha

E ainda assim
A sua vida sincera
Era uma grande mentira.

Quixotesco

Disseram que sou infantil no que escrevo
Acusaram-me de não ter sensualidade
"acaso não gosta de mulher?"

- Claro, mas há tanto céu, tantos pássaros
- Tantas pessoas, e pessoas dentro das pessoas
- E a beleza secreta das coisas, enfim...
"..."

"mas acaso não gosta de mulher?"
- Claro!
- Lá vai Dulcinéia, a mulher que eu amo
- Rodando, dançando em um moinho de vento.

Nudez

Dulcinéia me disse em confidência
Que ouviu de Pessoa em confidência
Acerca do amor:

Que este para ele e para ela
Não passa de uma ilusão, um traje, uma roupa
Com que cobrimos as pessoas de quem gostamos

Para esconder suas fraquezas e seus defeitos
Fazendo-os parecer diferentes, melhores e mais belos
Do que realmente são

Uma roupa, um traje, uma ilusão...

Que coisa, Dulcinéia, agora eu me sinto nu!

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

De repente sós

De repente estamos sós outra vez
O tempo passou
As pessoas passaram
Para onde terão ido?

De repente nós, apenas nós
Nós e a janela
Nós e o céu
Nós e uma nuvem que passa

Mas de repente alguém se lembra de nós
Alguém acabe sempre se lembrando

Então vamos
E deixamos a solidão quieta num canto, conformada
Ciente de que mais cedo ou mais tarde iremos voltar

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Nunca é dia

Nunca é dia quando quero

Acordo sempre de madrugada
Com saudades do sol

Toda aquela escuridão
"será que o sol vem mesmo?"

Saio e me sento do lado de fora da casa
Tremendo de medo e de frio

Até que as primeiras luzes da madrugada
Me surpreendam dormindo.

Filosofias de um felino

Meu gato não tem complicações
Nem teorias
Amoral - se quer abortar, aborta
Esnoba os carinhos com safanões
E não se importa com a louça nem com os metais
É indiferente ao amor do dono
E ao ódio dos cães
(por isso é superior aos cães)
Nunca o vi ajoelhar-se para deus
Nem para o diabo
Ele não está nem aí
Enquanto dizem: isto é certo, aquilo errado!
Meu gato enterra seu cocô e segue
Por isso o admiro tanto
Ele é apenas um gato, nada mais.

A passagem do mundo

E sempre acontece
O mundo pede passagem
Eu fico no meu canto quieto
Olhos extáticos
"A solidão não tem cura"
Penso comigo
Ninguém responde

O mundo com seus sacolejos
De monstro redondo
Espalha poeira e restos de amor pelo espaço

Em algum lugar ou momento
A mente cria uma estrela

Mas o mundo já se foi
Fazer o quê.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Acordar

-Amanhã acordar
- E então espantar-me com o sono
Com os sonhos ou com a falta deles

- Já nas ruas indo ao trabalho
Espantar-me com as próprias ruas
Com a dureza áspera, solitária e triste que elas têm

- Espantar-me com as pessoas nas ruas, são tantas
E estas senhoras com seus carrinhos de feira
Andam a me espantar o tempo todo
Como e quão existem, não é?

- Espantar-me com as luzes recém nascidas do dia
Como eu não havia reparado nelas antes?
E parece haver umas novas tonalidades hoje
Espantoso!

- Espantar-me comigo que penso ser uma coisa
Mas como me sinto diverso!

- Emfim de tudo, com tudo e pra tudo
Tudo em volta espantar-me
Sim
Amanhã acordar...

O Aniversariante

Era meu aniversário
Vieram todos pra festa:
Pais, tios, primos, sobrinhos, sobrinhas, amigos
E até meus falecidos avós acabaram por comparecer

Trouxeram-me muitos presentes
Que pena
Eu só queria um futuro.

Mundo quadrado

Achou que o mundo era redondo
Apalpou-o e lhe pareceu ser assim
Mordeu-o e tinha mesmo tal gosto

Chutou-o, fez e aconteceu com ele
Rolou-se e enrolou-se nele

E se convenceu ser redondo mesmo o mundo

Mas como se iludia, coitado
Pois o mundo, enfim, era quadrado.