quinta-feira, 5 de junho de 2014

Castelo de areia




O mar estava calmo. Algumas crianças brincavam na praia a certa distância, com os pais. Ao longe as gaivotas faziam algazarra sobre as águas. O sol ia tingindo lentamente o horizonte de vermelho. O homem estava sentado sobre uma pedra e oferecia a face à brisa marinha. De quando em quando uma gaivota voava mais perto e ele regressava de seus pensamentos para admirá-la. Havia poucas nuvens e, lá longe, um pequeno ponto prateado passava deixando um rastro branco e comprido no céu. Ele pensou nas minúsculas pessoas que deveriam estar dentro daquele pontinho, e que neste momento talvez estivessem com suas cabeças cheias de compromissos e destinos. De sua atual perspectiva, aquelas pessoas com seus compromissos, por mais importantes que fossem, pareciam-lhe distantes e alheias. Dentro de algumas horas nem mesmo aquele traço branco restaria no céu para evidenciar a passagem de alguém por ali. O céu tem a memória muito curta, pensou.
Então ele percebeu que a bola com que as crianças brincavam veio parar perto de onde estava. Levantou-se e lançou-a em direção a elas com um movimento desajeitado. A família estava de partida. O homem apanhou a bola e agradeceu com um aceno amistoso. Depois foram-se afastando em direção à cidade. Ele ficou admirando as silhuetas da família enquanto partiam, as crianças correndo e gesticulando. Até que não conseguiu mais vê-los.
Agora em pé e só, podia sentir melhor o vento que vinha do mar. Ouviu o barulho ritmado das ondas. Aos poucos foi ao seu encontro. Sentiu a água congelar-lhe os pés e recuou um pouco, mas logo se acostumou à sensação e prosseguiu. Quando estava com a água pela altura do peito, pode sentir plenamente a força das ondas. Não opôs resistência. Apesar de tudo, era uma sensação bastante agradável. Lembrou-se de quando era pequeno e tinha medo do mar e do barulho das ondas. Lembrou-se dos castelos de areia que fazia com ajuda do pai. Pensou na infância e adolescência que tivera, e se deu conta de que sempre teve de contar com ajuda dos outros. Teve a sensação de que nunca realizou nada realmente sólido e seu. Passara a vida até aquele momento sendo ajudado a construir seus castelos de areia. Depois do falecimento do pai, trocara sua figura assessora pela da mãe. Depois pela da esposa. E pensou na fragilidade de suas conquistas. E lembrou-se do dia em que ficara sabendo da doença da mãe. E do dia em que, há exatos sete anos, havia trazido a mulher e crianças a esta mesma praia. A última lembrança que lhe restou da família. E seu culpou por ter sobrevivido.
Mas uma onda o suspendeu com violência e ele percebeu subitamente que estava muito frio. A água agora encobria totalmente seu corpo até a altura do pescoço e manter a posição exigia cada vez mais esforço. Os pés não tocavam mais o fundo, e ele flutuava sofregamente com movimento de pernas. Percebeu que o mar o estava levando. O mar, desde sua infância, o estava erodindo e levando aos poucos: seus votos de final de ano, seu carro, casa, emprego bom. Pensou no mar levando as viagens que havia planejado fazer com a família, e que não saíram do papel. Levando o cachorro, o antigo armário da mãe, o olhar da esposa ao amanhecer, o sorriso dos filhos. Olhou em direção à cidade. Lá longe as luzes já acesas. Procurou identificar a direção de sua antiga casa. Deu-se conta de que lá não havia mais nada pra ele.
Abriu subitamente os olhos. Não sentia mais frio, o corpo leve, como que se diluindo, deixando-se levar, misturando-se ao mar. Dissolvendo-se às ondas, como um castelo de areia.