Alfredo Bos tinha 54 anos quando morreu em sua casa de beira
de estrada há algum tempo. Morreu só. Ninguém lamentou sua morte. Foi encontrado
algumas semanas depois, mais pelo cheiro do que pela falta. Era um homem comum.
Caminhava todos os dias. Nutria sonhos e desejos. Amou algumas mulheres, foi
amado. Apaixonou-se, decepcionou-se, voltou a se apaixonar. Viu coisas,
escreveu, disse, aprendeu e esqueceu coisas. Nunca disse nada tão importante a
ponto de ser totalmente lembrado nem tão insignificante a ponto de ser
totalmente esquecido. Ajudou algumas pessoas, prejudicou outras. Sentiu raiva,
remorso, ódio, tesão, medo, pânico, delírio, prazer, dor, culpa e solidão. Sentiu frio e calor. Viajou,
perdeu-se, encontrou-se, descobriu, espantou-se e causou espanto. Admirou-se e
causou admiração. Decepcionou-se e causou decepção. Sorriu, chorou, tomou
partido e foi indiferente. Feriu-se e se recuperou. Levantou-se e caiu, achou
que podia tudo, que em seu peito caberia a brisa da manhã inteira e em seus
olhos todo o pôr-do-sol. Achou que iria viver para sempre e morreu. E, depois
de morto, seu corpo serviu de alimento para os ratos.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Incompreensível
Metade das
coisas que eu não compreendo
São mistérios
medíocres e menores
Questões longínquas
triviais ainda que enormes
Dentre elas
estão espalhados sorrisos não oferecidos
Sombras disformes
rastros vestígios
Alguém que
passou e não foi visto
Alguém que
amou e não foi quisto
Uma necessidade
imprecisa
Alguma coisa
que não serviu e foi lançada fora
Algum gênio
que preferiu a solidão das garrafas herméticas
Aos
intermináveis desejos dos homens
A fome
Essa enorme
fome sem sentido e por sentido que devora os homens
Um dia por
vez
Fome de
febre e de voz
Eu não
compreendo a terrível deriva antiquíssima dos continentes
E a atual
dos conteúdos por exemplo
Isso e muito
mais mas na mesma linha compreende a metade
De tudo que
eu não compreendo
Embora seja
compreensível
Pois esta
metade que me compreende e que não é compreendida por mim sou eu
A outra e
mais importante é você.
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
olhar
Olhar pela janela de um carro em movimento
E constatar que o mundo é lento
Que o mundo é vento
Que a roda é via
E que não há distância maior que um dia
Um dia...
Olhar pela janela de um carro em movimento
Num dia cinzento
E ver a chuva cair obliquamente
E pensar: como é possível
Haver tanta insensibilidade na nossa realidade
Sensível?
A DANÇA (NERUDA)
Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo secretamente, entre a sombra e a alma.
Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.
Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
Se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.
Pablo Neruda
terça-feira, 5 de novembro de 2013
dos seres
Pra você eu
não sou uma pessoa
Posso ser
uma mensagem, um gesto
Uma palavra,
um bibelô, uma ocasião,
Um sentimento,
uma segurança, um orgasmo
Uma fuga, um
refúgio, uma aposta
Um erro, uma
falha, um pecado
Uma esperança,
um desespero, uma necessidade
Um status,
uma companhia, um corpo
Uma solidão,
um stress, uma inquietude
Uma fenda,
um remendo, uma ponte
Posso ser
qualquer coisa pra você
Mas não, jamais
serei uma pessoa
Pois a única
pessoa que buscamos durante a vida toda
Nas outras
pessoas, em tudo, em nada
Somos nós
mesmos.
absenteísmo
Hoje quando acordei sua ausência estava comigo. E ficou e
foi ficando, calada, imprecisa, acabrunhada, melancólica, fria.
Saí para trabalhar e sua ausência me acompanhou. Em tudo
que eu olhava, lá estava ela. Tentei e tentei mais despistá-la, mas quando cheguei
ao trabalho ela estava à minha espera.
E lá ficou o dia todo, fazendo cócegas, beliscando ou
mordiscando algumas lembranças reais e outras possibilidades impossibilitadas.
Na volta pra casa, sua ausência se adiantou. Quando
cheguei, ela já havia arrumado tudo do jeitinho que você gostava: cada coisa
fora do lugar a que pertencia para mostrar que a vida não é sempre óbvia e que
o errado também pode ser correto.
Então pensei que teria que passar o resto da vida ao lado
da sua ausência.
Mas não durou muito. De madrugada, acordo com um peso no
peito. Era a sua ausência me sufocando.
Então, enfático a mandei partir.
E sua ausência me disse: só vou se ela voltar.
Assinar:
Postagens (Atom)