sábado, 12 de novembro de 2011

Desforra - José Saramago



O rapaz vinha do rio. Descalço, com as calças arregaçadas acima do joelho, as pernas sujas de lama. Vestia uma camisa vermelha, aberta no peito, onde os primeiros pêlos da puberdade começavam a enegrecer. Tinha o cabelo escuro, molhado de suor que lhe escorria pelo pescoço delgado. Dobrava-se um pouco para frente, sob o peso dos longos remos, donde pendiam fios verdes de limos ainda gotejantes. O barco ficou balouçando na água turva, e ali perto, como se o espreitassem, afloraram de repente os olhos globulosos de uma rã. O rapaz olhou-a, e ela olhou-o a ele. Depois a rã fez um movimento brusco e desapareceu. Um minuto mais e a superfície do rio ficou lisa e calma, e brilhante como os olhos do rapaz. A respiração do lodo desprendia lentas e moles bolhas de gás que a corrente arrastava. No calor espesso da tarde, os choupos altos vibraram silenciosamente, e, de rajada, flor rápida que do ar nascesse, uma ave azul passou rasando a água. O rapaz levantou a cabeça. No outro lado do rio, uma rapariga olhava-o, imóvel. O rapaz ergueu a mão livre e todo o seu corpo desenhou o gesto de uma palavra que não se ouviu. O rio fluía lento.
O rapaz subiu a ladeira, sem olhar para trás. A erva acabava logo ali. Para cima, para além, o sol calcinava os torrões dos alqueives e os olivais cinzentos. Metálica, duríssima, uma cigarra roia o silêncio. À distância, a atmosfera tremia.
A casa era térrea, acachapada, brunida de cal, com uma barra de ocre violento. Um pano de parede cega, sem janelas, uma porta onde se abria um postigo. No interior, o chão de barro refrescava os pés. O rapaz encostou os remos, limpou o suor ao antebraço. Ficou quieto, escutando as pancadas do coração, o vagaroso surdir do suor que se renovava na pele. Esteve assim uns minutos, sem consciência dos rumores que vinham da parte de trás da casa e que se transformaram, de súbito, em guinchos lancinantes e gratuitos: o protesto de um porco preso. Quando, por fim, começou a mover-se, o grito do animal, desta vez ferido e insultado, bateu-lhe nos ouvidos. E logo outros gritos, agudos, raivosos, uma súplica desesperada, um apelo que não espera socorro.
Correu para o quintal, mas não passou da soleira da porta. Dois homens e uma mulher seguravam o porco. Outro homem, com uma faca ensanguentada, abria-lhe um rasgo vertical no escroto. Na palha brilhava já um ovóide achatado, vermelho. O porco tremia todo, atirava gritos entre as queixadas que uma corda apertava. A ferida alargou-se, o testículo apareceu, leitoso e raiado de sangue, os dedos do homem introduziram-se na abertura, puxaram, torceram, arrancaram. A mulher tinha o rosto pálido e crispado. Desamarraram o porco, libertaram-lhe o focinho, e um dos homens baixou-se e apanhou os dois bagos, grossos e macios. O animal deu uma volta perplexo, e ficou de cabeça baixa, arfando. Então o homem atirou-lhos. O porco abocou, mastigou sôfrego, engoliu. A mulher disse algumas palavras e os homens encolheram os ombros. Um deles riu. Foi nessa altura que viram o rapaz no limiar da porta. Ficaram todos calados e, como se fosse a única coisa que pudessem fazer naquele momento, puseram-se a olhar o animal que se deitara na palha, suspirando, com os beiços sujos do próprio sangue.
O rapaz voltou para dentro. Encheu um púcaro e bebeu, deixando que a água lhe corresse pelos cantos da boca, pelo pescoço, até aos pêlos do peito, que se tornaram mais escuros. Enquanto bebia, olhava lá fora as duas manchas vermelhas sobre a palha. Depois, num movimento de cansaço, tornou a sair de casa, atravessou o olival, outra vez sob a torreira do sol. A poeira queimava-lhe os pés, e ele sem dar por isso, encolhia-os, para fugir ao contacto escaldante. A mesma cigarra rangia, em tom mais surdo. Depois a ladeira, a erva com o seu cheiro de seiva aquecida, a frescura entontecedora debaixo dos ramos, o lodo que se insinua entre os dedos dos pés e irrompe para cima.
O rapaz ficou parado, a olhar o rio. Sobre um afloramento de limos, uma rã, parda como a primeira, de olhos redondos sob as arcadas salientes, parecia estar à espera. A pele branca da goela palpitava. A boca fechada fazia uma prega de escárnio. Passou tempo, e nem a rã nem o rapaz se moviam. Então ele, desviando a custo os olhos, como para fugir a um malefício, viu no outro lado do rio, entre os ramos baixos dos salgueiros, aparecer outra vez a rapariga. E novamente, silencioso e inesperado, passou sobre a água o relâmpago azul.
Devagar, o rapaz tirou a camisa. Devagar se acabou de despir, e foi só quando já não tinha roupa nenhuma no corpo que a sua nudez, lentamente, se revelou. Assim como se estivesse curando uma cegueira de si mesma. A rapariga olhava de longe. Depois, com os mesmos gestos lentos, libertou-se do vestido e tudo quanto a cobria. Nua sobre o fundo verde das árvores.
O rapaz olhou uma vez mais o rio. O silêncio assentava sobre a líquida pele daquele interminável corpo. Círculos que se alargavam e perdiam na superfície calma, mostravam o lugar onde enfim a rã mergulhara. Então, o rapaz meteu-se à água e nadou para a outra margem, enquanto o vulto branco e nu da rapariga recuava para a penumbra dos ramos.

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