quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Alfredo




Alfredo Bos tinha 54 anos quando morreu em sua casa de beira de estrada há algum tempo. Morreu só. Ninguém lamentou sua morte. Foi encontrado algumas semanas depois, mais pelo cheiro do que pela falta. Era um homem comum. Caminhava todos os dias. Nutria sonhos e desejos. Amou algumas mulheres, foi amado. Apaixonou-se, decepcionou-se, voltou a se apaixonar. Viu coisas, escreveu, disse, aprendeu e esqueceu coisas. Nunca disse nada tão importante a ponto de ser totalmente lembrado nem tão insignificante a ponto de ser totalmente esquecido. Ajudou algumas pessoas, prejudicou outras. Sentiu raiva, remorso, ódio, tesão, medo, pânico, delírio, prazer, dor, culpa e solidão. Sentiu frio e calor. Viajou, perdeu-se, encontrou-se, descobriu, espantou-se e causou espanto. Admirou-se e causou admiração. Decepcionou-se e causou decepção. Sorriu, chorou, tomou partido e foi indiferente. Feriu-se e se recuperou. Levantou-se e caiu, achou que podia tudo, que em seu peito caberia a brisa da manhã inteira e em seus olhos todo o pôr-do-sol. Achou que iria viver para sempre e morreu. E, depois de morto, seu corpo serviu de alimento para os ratos.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Incompreensível



Metade das coisas que eu não compreendo
São mistérios medíocres e menores
Questões longínquas triviais ainda que enormes
Dentre elas estão espalhados sorrisos não oferecidos
Sombras disformes rastros vestígios
Alguém que passou e não foi visto
Alguém que amou e não foi quisto
Uma necessidade imprecisa
Alguma coisa que não serviu e foi lançada fora
Algum gênio que preferiu a solidão das garrafas herméticas
Aos intermináveis desejos dos homens
A fome
Essa enorme fome sem sentido e por sentido que devora os homens
Um dia por vez
Fome de febre e de voz
Eu não compreendo a terrível deriva antiquíssima dos continentes
E a atual dos conteúdos por exemplo
Isso e muito mais mas na mesma linha compreende a metade
De tudo que eu não compreendo
Embora seja compreensível
Pois esta metade que me compreende e que não é compreendida por mim sou eu
A outra e mais importante é você.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

olhar



Olhar pela janela de um carro em movimento

E constatar que o mundo é lento

Que o mundo é vento

Que a roda é via

E que não há distância maior que um dia

Um dia...

Olhar pela janela de um carro em movimento

Num dia cinzento

E ver a chuva cair obliquamente

E pensar: como é possível

Haver tanta insensibilidade na nossa realidade

Sensível?

A DANÇA (NERUDA)



Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

Se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Pablo Neruda

terça-feira, 5 de novembro de 2013

dos seres



Pra você eu não sou uma pessoa
Posso ser uma mensagem, um gesto
Uma palavra, um bibelô, uma ocasião,
Um sentimento, uma segurança, um orgasmo
Uma fuga, um refúgio, uma aposta
Um erro, uma falha, um pecado
Uma esperança, um desespero, uma necessidade
Um status, uma companhia, um corpo
Uma solidão, um stress, uma inquietude
Uma fenda, um remendo, uma ponte
Posso ser qualquer coisa pra você
Mas não, jamais serei uma pessoa
Pois a única pessoa que buscamos durante a vida toda
Nas outras pessoas, em tudo, em nada
Somos nós mesmos.

absenteísmo



Hoje quando acordei sua ausência estava comigo. E ficou e foi ficando, calada, imprecisa, acabrunhada, melancólica, fria.

Saí para trabalhar e sua ausência me acompanhou. Em tudo que eu olhava, lá estava ela. Tentei e tentei mais despistá-la, mas quando cheguei ao trabalho ela estava à minha espera.

E lá ficou o dia todo, fazendo cócegas, beliscando ou mordiscando algumas lembranças reais e outras possibilidades impossibilitadas.

Na volta pra casa, sua ausência se adiantou. Quando cheguei, ela já havia arrumado tudo do jeitinho que você gostava: cada coisa fora do lugar a que pertencia para mostrar que a vida não é sempre óbvia e que o errado também pode ser correto.

Então pensei que teria que passar o resto da vida ao lado da sua ausência.

Mas não durou muito. De madrugada, acordo com um peso no peito. Era a sua ausência me sufocando. 

Então, enfático a mandei partir.

E sua ausência me disse: só vou se ela voltar.