segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Ode ao esquecimento




Às futuras gerações não pretendo deixar nada, o mundo
Não está melhor nem pior do que já estava quando aqui fui posto
Aos 33 anos já não possuo urgências nem ingenuidades
E percebo que o amontoado de meus dias
Serviu apenas para amarelar alguns de meus sorrisos
Deve ser esta a idade em que os heróis, por praxe, começam a esfumaçar
Diante da imprecisão dos ideais mais nobres
Vão, aos poucos, petrificando-se nas praças ante batalhas inacabadas
Ou alongando-se sobre a pele áspera das ruas por onde desfilam,
Alheios, os homens e os lugares comuns
Os gritos impetuosos que me nasciam
A todo tempo na garganta
Conclamando à luta contra os moinhos de vento que fatiam nuvens
Foram transformando-se aos poucos em clichês
Meus poemas já não fazem barulhos, não convocam a rebeliões
De que serviriam elas? Sobre as certezas frias, erram meus destinos
Perdem-se diante de palavras alheias, evadem para terras distantes
As minhas memórias tornaram-se, aos poucos, covardes frente aos fatos
Dou-me conta, e só agora, de que tenho gasto meu tempo
E esforço a construir o túmulo de minhas convicções
Ainda assim, alguns anseios pueris ousam habitar-me
Avanço de peito aberto contra as rajadas
Dos ventos e dos dias
Já não temo o frio do inverno
Nem revisito memórias aquecidas por verões passados
Trouxe até aqui, sem esmorecer, o peso dos homens que me precederam
Mas renego, agora, todos os nomes e títulos que me foram atribuídos
Por força de costumes, pois eles falharam em me definir
Devolvo tudo que me foi imputado pelos signos do nosso tempo
Não pretendo passar para a posteridade como um rótulo
Volto ao útero das coisas nu e desprovido de certezas
Como aqui cheguei
Sem nada saber, nada esperar, nada oferecer aos que ficarem
O esquecimento, entanto, há de me redimir.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Apague.A.Luz



Estou tentando algo. Experimental. Aqui. Há.
Algo rolando. Aqui. Algo como o seguinte.
Penso o seguinte. Imagine o seguinte.
Fracassaremos em fazer o seguinte.
Fracassaremos em dizer a palavra. Seguinte.
À pessoa. Seguinte. E no entanto. No momento.
Não. Comecemos novamente. Fracassar.
O ponto é que. Dentro em breve. Triste.
Todos os números. Primos morrerão.  Todos.
Os imortais. Morrerão. Todos os personagens.
De desenho. Animado. Morrerão.
Todos os elefantes velhos. Morrerão. Todos
Os cães e gatos abandonados. À própria.
Sorte. Morrerão. É um gesto simples. Veja.
Dois passos pra frente. Uma volta. Respire.
Um rodopio. Mas é opcional. Quem comanda.?.
É a dama. O cavalheiro deve deixar.
Um espaço pra jesus. Um espaço para.
Que seu pênis ereto não. Incomode.
Jesus. PORRA JESUS.!. Eu gritaria de madrugada.
Se isso fizesse algum sentido. Se isso.
Surtisse. Algum. Efeito. Eu tomaria.
Valium. Eu tomaria mais uma dose. Eu inventaria.
Mais uma roda. Eu faria. Um milagre. Ressuscitaria.
A merda do amor. Se você dissesse. Que ficaria. Bêbada
Pra sempre. Comigo. Eu diria UAU.!. EU COMPRENDERIA.
O cosmos. Eu compraria um carro. Usado.
Mas rodando. Em prestações. Eu iria até o fim.
Até o fim. ATÉ O FIM. Ficaria doido. Ficaria rico. De repente.
Eu faria as promessas. Todas. Até as impossíveis.
Até as que eu não estou. Muito. Disposto.
A cumprir. Postaria. Frases bestas. No.
Face. Book. Tipo. EU S2 VC. Que mais.?. que mais.!.
Este é o ponto. Esta é a gravidade. Nos puxando.
Este é o caminho. Nos perdendo. Agora.
Estamos em algum lugar. Perdidos. Agora estamos.
Agora estamos em algum tipo. De transe.
De transa. De trânsito. Riedade. Eu. E.
Você. E. eles. E nós não. Nos conhecemos.
Direito. E nós não. Estamos muito a fim.
A fim. De conversar. Sobre Foucault. Sobre o poder.
Que loucura. O céu é. Uma loucura azul seus. Seios.
São uma loucura. Uma loucura. Gostosa eu olho. Digo.
Eu. Olho.  Ela. Olha. Tudo está tão. Tudo se foi.
Ela. Olha. Nós pensamos. E. Se. Simplesmente.
Alguém agarrasse. O meu crânio. E chacoalhasse.
De modo. Que meu cérebro. Viraria. Alguma
Coisa. Gelatinosa. Que vertesse de meus.
Olhos. Lágrimas abstratas. E de meus. Ouvidos.
Sonatas de Bach. E de minha. Boca. Todas as palavras.
Até as sem sentido. Até as em desuso. Até as feias.
Até as desnecessárias. Até as mortas. Até a minha alma.
E minha alma surgisse. E ela fosse. Felpuda. E pegajosa.
Pequeno. Burguesa. E fosse. Muito infantil. E.
Verde. E ela fosse. Um ETE. E ela fosse.
Domesticada. Esticada. E soubesse rolar. E.
Fingir-se de morta. E apanhar. O jornal.
E ela começasse. Algo. Experimental. Tipo.
Contar os meus segredos. Profundos. Tipo.
Eu já quis. Aprender leitura dinâmica. Eu já adorei.
A bomba. Atômica. Eu já transei com um amigo. Imaginário.
Eu já quis te matar. De prazer. Eu já quis me matar.
Pra valer. Eu já vou. Nós já fomos. Apague a luz. Quando
Sair da minha vida. Por favor.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Castelo de areia




O mar estava calmo. Algumas crianças brincavam na praia a certa distância, com os pais. Ao longe as gaivotas faziam algazarra sobre as águas. O sol ia tingindo lentamente o horizonte de vermelho. O homem estava sentado sobre uma pedra e oferecia a face à brisa marinha. De quando em quando uma gaivota voava mais perto e ele regressava de seus pensamentos para admirá-la. Havia poucas nuvens e, lá longe, um pequeno ponto prateado passava deixando um rastro branco e comprido no céu. Ele pensou nas minúsculas pessoas que deveriam estar dentro daquele pontinho, e que neste momento talvez estivessem com suas cabeças cheias de compromissos e destinos. De sua atual perspectiva, aquelas pessoas com seus compromissos, por mais importantes que fossem, pareciam-lhe distantes e alheias. Dentro de algumas horas nem mesmo aquele traço branco restaria no céu para evidenciar a passagem de alguém por ali. O céu tem a memória muito curta, pensou.
Então ele percebeu que a bola com que as crianças brincavam veio parar perto de onde estava. Levantou-se e lançou-a em direção a elas com um movimento desajeitado. A família estava de partida. O homem apanhou a bola e agradeceu com um aceno amistoso. Depois foram-se afastando em direção à cidade. Ele ficou admirando as silhuetas da família enquanto partiam, as crianças correndo e gesticulando. Até que não conseguiu mais vê-los.
Agora em pé e só, podia sentir melhor o vento que vinha do mar. Ouviu o barulho ritmado das ondas. Aos poucos foi ao seu encontro. Sentiu a água congelar-lhe os pés e recuou um pouco, mas logo se acostumou à sensação e prosseguiu. Quando estava com a água pela altura do peito, pode sentir plenamente a força das ondas. Não opôs resistência. Apesar de tudo, era uma sensação bastante agradável. Lembrou-se de quando era pequeno e tinha medo do mar e do barulho das ondas. Lembrou-se dos castelos de areia que fazia com ajuda do pai. Pensou na infância e adolescência que tivera, e se deu conta de que sempre teve de contar com ajuda dos outros. Teve a sensação de que nunca realizou nada realmente sólido e seu. Passara a vida até aquele momento sendo ajudado a construir seus castelos de areia. Depois do falecimento do pai, trocara sua figura assessora pela da mãe. Depois pela da esposa. E pensou na fragilidade de suas conquistas. E lembrou-se do dia em que ficara sabendo da doença da mãe. E do dia em que, há exatos sete anos, havia trazido a mulher e crianças a esta mesma praia. A última lembrança que lhe restou da família. E seu culpou por ter sobrevivido.
Mas uma onda o suspendeu com violência e ele percebeu subitamente que estava muito frio. A água agora encobria totalmente seu corpo até a altura do pescoço e manter a posição exigia cada vez mais esforço. Os pés não tocavam mais o fundo, e ele flutuava sofregamente com movimento de pernas. Percebeu que o mar o estava levando. O mar, desde sua infância, o estava erodindo e levando aos poucos: seus votos de final de ano, seu carro, casa, emprego bom. Pensou no mar levando as viagens que havia planejado fazer com a família, e que não saíram do papel. Levando o cachorro, o antigo armário da mãe, o olhar da esposa ao amanhecer, o sorriso dos filhos. Olhou em direção à cidade. Lá longe as luzes já acesas. Procurou identificar a direção de sua antiga casa. Deu-se conta de que lá não havia mais nada pra ele.
Abriu subitamente os olhos. Não sentia mais frio, o corpo leve, como que se diluindo, deixando-se levar, misturando-se ao mar. Dissolvendo-se às ondas, como um castelo de areia.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Poema Daltônico





Há tempos que o maior efeito do tempo sobre nós não é mais
Nos envelhecer, e sim tornar-nos obsoletos

Tempos que se declara o amor por declarar
Que há ainda a necessidade de amor, mas já não há necessidade de amar
Tempos em que enviamos cartas, convites, bilhetes
Sem a necessidade de destinos ou destinatários
Em que se pergunta apenas por perguntar, sem expectativa ou interesse pelas respostas

Tempos em que a fumaça deixou de enviar sinais ou indicar incêndios
Tendo se tornado apenas mais uma das tantas formas de nos envenenarmos
E em tais tempos ninguém nos salvará de nós mesmos
E nós não salvaremos ninguém de ninguém

Então finalmente nos daremos conta de que o amor
Já não nos comove mais
Que há tempos passamos a sorrir ou chorar por indução, por instinto
Sem a necessidade de uma experiência concreta
E perceberemos que não foram as horas que aumentaram
Nós é que nos tornamos menores diante do tempo que nos resta

Então provavelmente arranharemos paredes e daremos murros
Em pontas de facas imaginárias
Na tentativa frustrada de nos refugiarmos na dor da comiseração
Mas talvez constatemos que isso não tornará o processo menos complicado
Nem nos eximirá das nossas muitas responsabilidades
E então perceberemos, para nosso espanto, que nem ao menos estamos
Vivendo genuinamente, como gostaríamos
Estamos apenas seguindo o fluxo inexorável do senso comum, como todos ao redor
No automático apenas e constataremos que somos mais úteis e o pior
Mais felizes assim.